Porque eu amo a tetralogia napolitana, de Elena Ferrante

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Porque eu amo a tetralogia napolitana, de Elena Ferrante

Duas amigas na praia, foto de 1959, em Sydney, Austrália
Foto de 1959 que encontrei aqui
Alerta: contém spoilers! Se isso te incomoda, fuja enquanto há tempo e vá ler outros textos meus sobre livros, cultura pop ou gênero.

Vamos começar tirando a sinopse do meio do caminho. Escrita pela italiana Elena Ferrante, a tetralogia napolitana é uma saga composta por A amiga genial (2011), História do novo sobrenome (2012), História de quem foge e de quem fica (2013) e História da menina perdida (2014)*.

A saga trata da amizade entre Elena Greco (Lenù) e Raffaela Cerullo (Lila), duas meninas que crescem na periferia de Nápoles e adotam caminhos diferentes. Apoiada pelos pais, Lenù pode continuar estudando, enquanto Lila, por falta de dinheiro e de incentivo da família, é forçada a largar os estudos.

Esse resuminho porco não traduz, porém, a empolgação que os livros de Ferrante provocam, pelo menos em mim e suponho que em outras mulheres. Aí vão os motivos principais que me fizeram me apaixonar pela história de Lila e Lenù.

Os homens não são príncipes encantados ou anti-heróis – para bem e para o mal


Foi um alívio finalmente encontrar retratos tão honestos de homens. Estava cansada de ver escritores do sexo masculino contarem vantagem sobre a própria crueldade (ok, isso é uma indireta para o Charles Bukowski).

Acredito que podemos ter um retrato fiel de vários homens ao lê-los sob a perspectiva de mulheres, que conseguem enxergá-los para além das glórias, pois são quem lidam diretamente, na mundanidade do cotidiano, com as suas qualidade e os seus defeitos.

A tetralogia napolitana nos apresenta um dos boylixos mais frustrantes da literatura, que ganhou até um blog no Tumblr dedicado a odiá-lo. É Nino Sarratore, na vida pública um intelectual renomado que, por fim, consolida uma carreira política.

Toda mulher hétero ou bi infelizmente tem um Nino – ou vários – para chamar de seu. Afinal, é fácil se encantar por um homem como ele: bonito, inteligente, charmoso e mulherengo.

Porém, no âmbito privado, enxergamos Nino pelas consequências que ele provoca na vida das mulheres com quem se relaciona.

Compulsivamente infiel, Sarratore engravida mulheres e não assume os filhos. Quando “assume”, com registro  de paternidade, não paga pensão nem se faz vivo, a não ser quando precisa reforçar a sua imagem de pai de família para ganhar uma eleição.

Nino diz “amar as mulheres” e apoiar o movimento feminista, mas é tudo fachada para seduzir dezenas amantes as quais poderá usar ou descartar da forma que favoreça o ego ou a carreira dele. Parece familiar?

(Antes que as reclamações comecem, dedico o troféu de Nem Todo Homem ao Enzo,  segundo marido de Lila e o único cara heterossexual que dá pra admirar sem ressalvas nessa narrativa).

Toda mulher já teve – e foi – uma amiga genial


Além da violência e da negligência masculinas, um dos temas centrais da saga é a rivalidade entre Lenù e Lila, que estão sempre se desafiando. É claro que o clássico recurso narrativo "amigas e rivais" não é novidade, servindo de fomento até para novela mexicana exibida pelo SBT.



A inovação de Ferrante está em retratar essa relação com a complexidade que ela merece, intercalando inveja e mesquinharia com ternura, coragem e compreensão.

Os momentos de antagonismo se revezam com os de espelhamento. No primeiro livro, A amiga genial, passamos toda narrativa acreditando que amiga a quem o título do livro se refere é Lila. No fim, porém, descobrimos que é assim que Lila chama Lenù. Quem, afinal, é a amiga genial?

Quando chegamos ao fim da tetralogia napolitana, percebemos que a insegurança de Lenù se deve mais à paranoia e à dificuldade de empatizar com Lila, consequência de um mundo que antagoniza mulheres.

Assim como Dom Casmurro encerra seus dias crente de que Capitu o havia traído, Lenù, na velhice, ainda convive com o medo de ser ultrapassada por Lila.

Mas se nos atermos aos fatos, foi Lenù que conquistou tudo aquilo que Lila desejava. Enquanto Lila sonhava em ser escritora e chegou a escrever um livro na infância, A fada azul, é Lenù quem se transforma numa autora premiada e internacionalmente reconhecida, com vários volumes publicados.

Porém, mesmo no auge da fama, Lenù teme que Lila esteja rascunhando um livro que termine por desbancá-la.

A inveja de Lenù a torna tão autocentrada que ela não consegue conceber o impacto que escrever sobre o desaparecimento da filha de Lila, Tina, teria na amiga. Lenù publica Uma amizade, sucesso de vendas e de crítica, consolidando de vez seu lugar no cânone literário, sonho que Lila, devido às circunstâncias da vida, jamais conseguiu realizar.

Lenù obtém sucesso literário não só utilizando o episódio mais traumático da vida da amiga, mas constrói uma narrativa em que a culpa pelo desaparecimento recai sobre Lila.

Além de enfrentar o ostracismo provocado pelos vizinhos de bairro, que a consideram uma mãe desleixada por ter “deixado” a filha desaparecer, Lila encara sua própria amiga emitir a mesma opinião – não em uma conversa, não em uma carta, mas em um livro, objeto de fascínio que a mistificava desde criança.


Momento Inception: é um livro dentro de um livro


A tese do livro fictício de Lenù, Uma amizade, conecta o episódio em que a dupla perde duas bonecas na infância com o desaparecimento de Tina.

Trata-se de um dos recursos narrativos favoritos de Lenù, nossa narradora-escritora: inserir simbolismos em detalhes do cotidiano, criando presságios que ligam passado e futuro, ressignificando o que se passou pelo que se sabe que irá acontecer.

Muita gente reclamou, por exemplo, do final de A amiga genial, primeiro volume da série. Acharam repentino, sem sentido, anticlimático. Mas mostrar os sapatos criados por Lila nos pés de Marcello Solara, imagem que marca o fim do livro, tem a sua razão. Os sapatos são o agouro da presença dos Solaras na vida de Lila e dos esforços que eles farão para colocá-la aos seus pés.

Ao serem conduzidos por uma narradora-escritora, os livros da saga napolitana se tornam, de uma certa forma, fictícios também. Estamos lendo uma escritora fictícia escrever um livro fictício. Lenù é uma narradora não-confiável porque escritora, e na tetralogia napolitana temos acesso a última obra do seu universo.

A saga se inicia com Lila desaparecendo, sumindo com todos seus pertences e registros de que existiu, como sempre havia dito que gostaria de fazer. Por despeito ao desaparecimento da amiga, Lenù começa a escrever tentando eternizar o que sabe para provar que ela não pode desaparecer, mas o projeto é sabotado por Lila: a história se encerra quando Lila envia as tais duas bonecas para Lenù.

Enviar as bonecas é uma pista para a versão de Lila dos fatos. É a punchline** que a gente precisava: Lila, em um gesto críptico, revela que as bonecas nunca haviam sido perdidas, estavam sob sua posse o tempo todo. E se as bonecas não haviam sido perdidas, destrói-se o raciocínio construído em Uma amizade.

Assim como Lila não é responsável pela perda das bonecas, ela não é responsável pela perda da filha. E por mais que Lenù se esforce para reconstruir a história da amizade entre as duas, a palavra final é de Lila: há coisas sobre Lila que Lenù jamais saberá.✨

*Datas de publicação na Itália, pela editora Edizioni e/o. No Brasil, o primeiro livro foi lançado em 2015 e o último em 2017, pelo selo Biblioteca Azul, da Globo Livros.
**Punchline: última linha da piada, fusão entre "soco" e "linha", ou mais poeticamente, uma linha que te soca.

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Leia mais em O fascínio da bruxa e Os piores conselhos para mulheres solteiras – direto dos anos 60.  


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